Esquecer Godot

Bem-vindo aqui! Este blog é meu. Quero-o. Para que as palavras não se esqueçam de mim. Para que o meu ser jamais se dilate, como que envergonhado. Se não esquecermos Godot, ele esquece-se de nós. Se me esquecer de mim, tudo me olvidará. Sê bem-vindo a mim.

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Location: Lisboa, Lisboa, Portugal

Sunday, December 18, 2005

"A fada engarrafada"

Tanta garra tem a fada quando engarrafada
que fada deixa de ser e outra coisa é

Fada do meu lar e do meu dente,
não vês que sou demente?
Quando te olvidei como toda a gente
não sonhei que me viesses ver
mas dei-te uma jaula
para te voltar a esquecer

Tanta garra tem a fada quando engarrafada
que fada já não é nem outra coisa qualquer.

Fada dos meus sonhos,
não vês que não sou crente?
Quando te matei como toda a gente
foi para poder viver
se te esqueci foi porque enlouqueci
e a demência esquece a infância.

Lucas Madrugada

Wednesday, December 14, 2005

"Muralha mole"

Endureceu-se-me a pele amanhã
amanhã sim, serei o outro
amanhã estou rude e musculado
sou o crocodilo de outro
amanhã fui mudado

ontem serei duro e pouco dado
a pensar em depois de amanhã
ontem talvez serei o outro
o actor deste clã
que ontem actuou
para um público pouco dado.

Lucas Madrugada

Tuesday, December 13, 2005

"Amor II"


Desperto, vou tratar de mim
penteio-me
varro os dentes
limpo o solo da minha pele
banho as pestanas que seguram orvalho
e travo o crescimento das unhas.
Por ti.

Vou descansar antes que os olhos se colem ao escuro.
Amanhã, podes precisar de mim.

Lucas Madrugada

Saturday, December 10, 2005

O pequeno hamster

A Luísa construiu a sua própria guilhotina em miniatura. Algures na web encontrou um guia de montagem, em mais uma daquelas ocasiões em que o ser humano se despista da vida para se ocupar de ocupar a existência.
Há dias tinha-lhe sido oferecido um hamster branco de olhos avermelhados, um autêntico demónio com a capa da sensualidade, que mordia toda a gente. Luísa ainda não se aventurara a pegar no bicho. Por enquanto respeitava o seu território, cada macaco no seu galho. Especialmente após o incidente com o irmão mais novo que, ao se encher de coragem para dar algum carinho ao animal, sofrera um ataque ao dedo anelar da mão direita que lhe custara três pontos.
Passaram-se dias em que Luísa fora ganhando a confiança do demónio, com incursões gradativas à sua jaula para este ser subornado por pedaços de cenoura. Passados uns dez dias, o mostrengo já permitiu um leve toque de pele humana, mas sempre com a certeza duma recompensa, digamos, atenciosa. No dia seguinte, Luísa esqueceu-se da recompensa, e o bicho, desiludido e exasperado, resolveu vingar-se na ponta do nariz da nossa amiga, enquanto ela o acariciava com a face. Luísa prontamente o atirou ao chão e fugiu para a casa-de-banho para se tratar. Ia precisar de pontos. Voltou para o quarto. Fechou a porta. O pequeno roedor olhava-lhe. Nunca as suas antenas vibraram tanto. Nunca se sentiu com tamanha emoção, tamanha apreensão. Ainda tinha um pedaço de queijo em cima da cómoda. Usou-o para atrair o hamster à sua mão. O bicho, hipnotizado pela guloseima, ia comendo o queijinho nas mãos de Luísa que observava a sua mais recente criação. Luísa tinha a guilhotina e o queijo na mão. Meteu o demónio em posição e experimentou a sua pequena novidade. Zás! Um corte perfeito. Luísa abriu a porta do quarto e assobiou três vezes. Rapidamente surgiu do andar de baixo pelas escadas o seu animal doméstico com o rabo a abanar. Levou-o ao local do crime. O cão lambeu o sangue que jorrava e levou o corpo do bicho para outro lugar. Luísa foi ao congelador buscar gelado.

Tuesday, December 06, 2005

"Depois de amanhã vou esquecer um sonho"

Sinto a Morte lenta e descanso.
Olho para trás para qualquer coisa;
move-se tranquilamente pelo tempo
enquanto aguardo pelos sonhos
que tive e vou tendo

Depois de amanhã vou esquecer um sonho
numa sacudidela como areia da praia

Há tempos fingi ser quem serei.
cheguei atrasado e confuso
a um agora falseado
como quem não sabe onde deixou a vida
quiçá tenha caído da algibeira
e voado com a areia

Não vês que a dor está na metafísica, meu amor?
Vem comigo e salta até voares
apanha um cometa como o Principezinho
que eu lá estarei
ao lado do sonho
que não é só um

Os sonhos apressam-se e apanham cometas
indeciso, fiquei em terra
sem traço, sem rumo
Passaram-se tempos e eu sem sonho
que se agarre a mim com toda a força
Sem o eu que sou, esse perdeu-se
nas viagens que fez a outros lados

Saio de casa como quem sai da cama
com o medo de perder o conforto que
ganho por não ter sonho sequer
e de na vida não viver mas existir

talvez a tua beleza seja um sonho,
porém este não se escolhe,
mas encolhe
como quando saio à rua
segurando a minha própria trela
que me aperta o pescoço com os lábios

Anda de bicicleta puto!
não vês que era lindo que fosse assim para sempre?
Entrega o cabelo aos ventos do tempo
para que se apaixone por ti e amoleça.
A mim não deram tamanho conselho
mas insistes em estar a horas para o jantar,
a insistência no presságio da memória

De soslaio contemplo-me há algum tempo atrás
era como tu, pequenito
charmoso, vitorioso!
confiava ser assim para sempre,
pequenito, como tu

vivi a pensar no pequeno eu e esqueci-me
e a vida vai-me à frente
mas não hei-de ficar imóvel.

Lucas Madrugada