Esquecer Godot

Bem-vindo aqui! Este blog é meu. Quero-o. Para que as palavras não se esqueçam de mim. Para que o meu ser jamais se dilate, como que envergonhado. Se não esquecermos Godot, ele esquece-se de nós. Se me esquecer de mim, tudo me olvidará. Sê bem-vindo a mim.

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Location: Lisboa, Lisboa, Portugal

Monday, November 28, 2005

A angústiazinha

Deparei-me com o meu bilhete de identidade e congratulei-me por ser dos felizardos reconhecidos dentro de, pelo menos, do seu próprio mundo. Todavia, reparei em algo que nunca tinha visto. Na parte de trás do cartão, como deve ser, estranhei a altura que me impuseram: 1 metro e 72 centímetros. Sim, mediano, normalíssimo. Mas eu não meço isso. Meço 100 centímetros. Tinha que ir à Loja do Cidadão (também me pertence) certificar-me e corrigir o erro.
No dia seguinte fui lá. Depois de ter esperado umas boas horas fui atendido.
_ Bom dia, meu senhor, qual é o problema agora?_ perguntou o funcionário público.
_ Neste preciso momento é estranhar a sua pergunta. Então mas eu tenho cá vindo recentemente?
_ Todos cá vêm e todos cá voltam, vêm e voltam , vêm e voltam.
_ Seja. Bem, o meu problema é que meço 100 centímetros e no B.I vocês puseram-me com 172 centímetros. Tenho que tirar um novo.
_ O senhor não mede 100 centímetros.
_ Meço sim, ainda no outro dia gritei na multidão e ninguém me ouviu. Ainda saltei e apalpei umas pernas, mas nada. Noutra ocasião, vi um rapazola com ar de cowboy matar milhares de pessoas só para sustentar melhor o seu carro. Como sou pequeno, os meus murros e pontapés não foram sentidos. Pensei em usar uma faca, mas são sempre demasiado pesadas para uma pessoa do meu tamanho. Noutra, tentei-me matar mas parei porque ninguém me fez parar. Uma vez tentei salvar um peixe fora de água, mas era um espadarte demasiado pesado. Outra tentei salvar-me, mas o fardo da minha alma sugou-me ainda mais para dentro. Enfim, o que se há-de fazer? Sou pequenino e pronto.
_ De facto, pelo que diz, a sua altura tem de ser mudada. Volte cá amanhã com este certificado preenchido e logo veremos se as altas entidades aceitarão que a sua verdadeira altura seja reconhecida pelo mundo.
_ Muito obrigado. Até amanhã.


De seguida, o senhor que escreveu isto morreu esborrachado pela Morte,e pronto.

Dinis Pires

Thursday, November 17, 2005

"Tempo sem tempo"

Consta a história, quando eu
habitava tumultas tempestades,
que um poema amadurecia
e invadia-me de vaidade

Consta o presente, quando eu
vivo com a calma de não viver
que me pesa na balança
a ânsia de escrever

Ouvi contar que outrora, quando Pessoa
escrevia sobre um jogo de xadrez,
havia na Pérsia quem escrevesse
sobre eu aqui a escrever

Lucas Madrugada

"O cantar sereno das tuas águas"

O cantar sereno das tuas águas
invade-me os poros as veias os ossos
banha-me de suores tépidos e beijos
desejos nossos, não mágoas
como se tivéssemos a aorta
no estômago

música serena visceral
que me canta em beijo
me olha em abraço que sobeja

o canto não se cala é orgásmico
interminável
tão adorável
com os olhos cerrados
e vivos

Lucas Madrugada

Wednesday, November 16, 2005

"Imagino-lhe maldade"

Ó criança vil do riso sarcástico
outrora foste rocha e pedra e calcário
foste mar e suas ondas
revoltas
fundaste cidades nos desertos
saltaste do cimo dos montes
mais altos
trepaste árvores
centenárias
foste cadela
septuagenária
partiste cabeças com basaltos
e sentiste
tudo
bem perto

és vil e tens o riso sarcástico
és cobra sem pele
já criança não és,
a criança é ruínas
és serpente com pés
e loucura minha.

Lucas Madrugada